Ainda continuamos a olhar para o agricultor como o vilão, aquela imagem do homem que usa o barrete, o gajo tacanho, que fala mal, que é pequenino e redondinho e não sai da sua terra.

Não será pela falta de procura que o Vinho Madeira virá um dia a desaparecer. Pois, continua a ter apreciadores em todo o mundo. Também não se verificam, neste caso, os problemas de sobre produção que assolam outras regiões vinhateiras. A viabilidade deste setor de atividade, a médio prazo, não dependerá tanto da procura, mas da oferta.
A pressão demográfica foi sempre muito mais acentuada na costa Sul da Madeira, sendo aí que vive a maior parte dos seus habitantes desde longa data, com grande concentração populacional na cidade do Funchal. Esta é a capital desde os primórdios do povoamento e era, até ao século passado, o seu principal porto. A orla meridional é também hoje a mais procurada pelos turistas, sendo talvez essa a maior ameaça para os seus vinhedos. Ano após ano, parcelas dedicadas anteriormente a esta cultura são ocupadas por complexos residenciais de luxo e empreendimentos hoteleiros, tanto no Porto Santo como na ilha da Madeira.

Numa superfície total de 741 km2, apenas restavam cerca de 400 hectares ocupados pelo terroir do Vinho Madeira em 2017, ou seja, um quinto dos 2000 hectares assinalados nos anos 1960 por Eduardo Clemente Pereira. Isto faz com que este território insular seja uma das mais pequenas regiões vinhateiras de Portugal, o que é paradoxal se considerarmos a sua fama desde longa data.
O Norte da ilha, que produz a maior parte das uvas, continua a ser simultaneamente a área com a mais baixa densidade populacional e a menos atrativa para os turistas. Isto não significa, porém, que a vitivinicultura esteja livre de perigo nessas bandas. Tanto a Sul como a Norte, as gerações mais novas não se sentem atraídas pelo estilo de vida rural dos seus antepassados. Os próprios pais encorajam os filhos a estudarem “para não acabarem como eles”. O estigma em relação ao trabalho agrícola é antigo e bastante enraizado na cultura regional, sendo alimentado pelo estereotipo persistente de “vilão” acanhado, ignorante e rude. Mesmo aqueles que deixaram o seu “poio”, para procurar uma vida melhor “na cidade”, não conseguem ainda hoje se libertar deste preconceito que muitos citadinos acreditam pertencer a um passado revoluto. Como observa o arquiteto Vitor Mestre:
“Ainda continuamos a olhar para o agricultor como o vilão, aquela imagem do homem que usa o barrete, o gajo tacanho, que fala mal, que é pequenino e redondinho e não sai da sua terra. Esta é uma visão completamente arcaica e injusta do madeirense“.

Esta visão negativa da ruralidade torna difícil criar vocações entre os jovens, hoje com elevados níveis de formação, que irão herdar um dia os vinhedos da família. À desvalorização social da ligação à terra, soma-se a pequenez dos poios onde crescem as cepas e o seu difícil acesso que impede a mecanização, tornando as tarefas rotineiras muito mais árduas. Tudo se conjuga para que, num futuro relativamente próximo, o fenómeno de abandono ganhe proporções cada vez maiores, pondo mesmo em risco a continuidade da atividade das casas exportadoras de Vinho Madeira.
Outro problema prende-se com o desfasamento entre a oferta e a procura das diferentes variedades de uvas autorizadas para a produção de Vinho Madeira.
A Tinta Negra, por ser mais prolífera e mais resistente às pragas e doenças, é a preferida dos agricultores, ocupando hoje 53% da área total do terroir que lhe é dedicado. Contudo, o “saber apreciar” atual valoriza mais as castas brancas. Por serem mais frágeis, o seu cultivo representa um maior risco para o produtor, apesar de o seu preço de venda ser mais elevado. A Tinta Negra serve, assim, muitas vezes para fazer os vinhos estufados, menos valorizados, ou é simplesmente escoada a granel para fins culinários. Isto faz com que a produção de castas brancas, como a Sercial, a Verdelho, a Boal e a Malvasia, seja insuficiente a médio prazo, se o “saber apreciar” não mudar.
