As tradições do Vinho Madeira, no seu todo, dão corpo a uma herança viva, transcultural e “glocal”, no sentido em que é difusa e transcende as fronteiras políticas. Porém, está profundamente enraizada no território onde é produzido.

Devido à vocação vitivinícola do arquipélago ao longo de vários séculos, são poucas os legados tangíveis e intangíveis que não estão relacionados com o Vinho Madeira, tornando-o num elemento central da identidade coletiva dos madeirenses e da sua diáspora. Ao mesmo tempo, é o seu legado cultural mais identificável no estrangeiro, sendo apreciado há séculos em países da Europa, América, África, Oceânia e Ásia, simultaneamente enquanto bebida e ingrediente culinário. Trata-se, portanto, de uma herança viva, transcultural e “glocal”, no sentido em que é difusa e transcende as fronteiras políticas. Porém, está profundamente enraizada no território onde é produzido.
A dimensão imaterial deste património vitivinícola não reside apenas no vasto saber-fazer que o torna único, mas também num “saber apreciar” e num “saber contar” muito antigos, apurados por cada geração. O saber-fazer relacionado com a produção do Vinho Madeira está nas mãos de um pequeno grupo de indivíduos fortemente ligados a um “nano terroir” com pouco mais de 400 hectares de extensão. Quanto ao “saber apreciar”, é partilhado por um vasto conjunto de aficionados, dispersos por todos os continentes.

O “saber contar” é, por sua vez, o que confere a todas as partes envolvidas o sentimento de pertença a uma mesma comunidade patrimonial, apesar de o oceano que as separa. É fundamentalmente uma forma consensual e agregadora de explicar o Vinho Madeira, que situa a sua origem não em terra, mas no mar.
A narrativa constrói-se em volta de um feliz acaso que levou à descoberta do efeito benéfico do aquecimento no vinho, após várias passagens de barco nos trópicos. O calor, elemento humoral dos antigos, é assim elevado a princípio basilar do processo de envelhecimento que singulariza o Vinho Madeira. Serve de fio condutor entre o lendário “vinho de roda”, grau zero desta tradição, e os métodos de produção atuais. Esta narrativa criacionista, aperfeiçoada ao longo de várias gerações, confere a todas e a todos um sentimento de identidade e de continuidade. Um tópico assaz complexo fica assim explicado em poucas palavras, suscetíveis de serem entendidas por qualquer um, tendo também a vantagem de ser inclusiva.

Elegendo o porão de um barco como berço em vez de um terroir, como é habitual, este “saber contar” soube abstrair-se da visão isolacionista da cultura herdada do nacionalismo, para criar um modelo explicativo original que assume sem complexos a dimensão global deste património enológico. Esta narrativa ajuda também a racionalizar o facto de as técnicas de vitivinicultura terem evoluído constantemente, desde o momento da sua “invenção” há cerca de 250 anos. Isto acontece porque o que torna realmente único o seu saber-fazer não são, portanto, os métodos empregues em si, mas a forma eminentemente pragmática como os seus passadores conseguiram manter na longa duração um subtil equilíbrio entre traditio e novum.
Não deixa, porém, de ser um vinho-património, no sentido em que se define, do ponto de vista jurídico, como o resultado de práticas culturais e de fabrico que se mantêm fiéis à tradição. Entende-se por tradição a forma como são idealizadas pelos seus passadores no presente, precisamente através do “saber contar” (explicitado mais atrás).
