Escassez, abnegação e coragem não são suficientes para explicar o esforço humano que, desafiando o abismo, foi capaz de moldar tal paisagem.

A Madeira localiza-se no meio do Oceano Atlântico, a cerca de 1000km da costa meridional de Portugal e a cerca de 700km ao largo da costa sudoeste de Marrocos (latitude 30º e 33º Norte, longitude 17º Oeste). Esta localização geográfica confere ao território insular um clima subtropical ameno, com fraca amplitude térmica, tanto diurna como anual. Madeira é simultaneamente o nome da ilha e do arquipélago. Este integra a ilha do Porto Santo e dois conjuntos de ilhotas conhecidos como Selvagens e Desertas, correspondendo administrativamente à Região Autónoma da Madeira.
Apenas as duas ilhas principais, as únicas habitadas, fazem parte da Região Demarcada da Madeira. A mais pequena, chamada Porto Santo, apresenta um relevo pouco acentuado de origem vulcânica. Existem, à sua superfície, extensas manchas de “solos de barro”, arenosos, alcalinos e ricos em silicatos de alumínio, sendo bastante áridos. A maior das ilhas, que dá o nome ao Vinho Madeira, terá também surgido devido a um acidente eruptivo já no período quaternário, o que explica que o seu substrato rochoso seja dominantemente basáltico.
Da sua degradação resultam solos ricos em ferro e fósforo, tendencialmente ácidos, o que se repercute nas uvas produzidas na sua superfície. A acidez é precisamente o que singulariza o Vinho Madeira, contrastando de forma harmoniosa com a doçura natural da fruta acentuada pelo processo de fortificação que o torna licoroso. Confere-lhe uma grande frescura, quando comparado com outros vinhos generosos. As especificidades deste meio fazem com que as castas usadas tenham qualidades organoléticas distintas daquelas que tendem a adquirir noutras regiões da Europa onde são cultivadas, como já observava Eduardo Clemente Pereira na década de 1960. Também mudam de lombo a lombo, devido a uma combinação complexa e lábil de fatores variados.

O terroir madeirense é, assim, uma verdadeira manta de retalhos, cada cultivar sendo adaptado a um nicho específico. Por outro lado, uvas da mesma variedade podem, nalguns casos, dar origem a mostos muito diferentes noutra parte da ilha, com tempo de maturação igual. É, na verdade, um “nano terroir” com pouco mais de 400 hectares de extensão, ou seja, cerca de um quarto da área de vinhedos do concelho da Vidigueira.
O Vinho Madeira não existiria sem o que o antropólogo Jorge Freitas Branco chamou “os jardins suspensos do Atlântico”. Foi graças a um esforço titanesco, levado a cabo por gerações sucessivas, que o “vilão” domesticou pouco a pouco o seu habitat. Transformou as declivosas vertentes da ilha numa sucessão de estreitos terraços, os “poios”, que encontramos hoje mesmo nas encostas mais íngremes.
Parece incrível, olhando para o resultado, acreditar que é fruto de um simples processo de auto-organização na longa duração, como observa o arquiteto Rui Campos Matos: “Escassez, abnegação e coragem não são suficientes para explicar o esforço humano que, desafiando o abismo, foi capaz de moldar tal paisagem”.
Sem o que os ilhéus chamam “poios”, nunca teria havido uvas suficientes para que o Vinho Madeira fosse exportado em larga escala. Por detrás deste pequeno prodígio de engenharia vernacular, existe um saber-fazer, transmitido de geração em geração, sem recurso a manuais técnicos nem vídeos do Youtube. Este conhecimento prático incide particularmente na construção dos muros ciclópicos em basalto regional que sustentam os socalcos, onde crescem as videiras. Esta paisagem, que parece feita com um esquadro, resulta de um conjunto de técnicas que garantem a sua perenidade.
Este sistema agrícola muito sui generis resulta de uma epopeia humana que começou com a introdução da cana-de-açúcar na ilha da Madeira, pouco após o seu achamento. A maior parte das plantações localizavam-se, então, na costa sul, onde o clima era muito seco no verão. O progresso desta cultura só foi possível graças a um enorme esforço visando a domesticação dos recursos hídricos. A estratégia adotada, desde o século XV, consistiu em conduzir a água dos numerosos riachos que nascem no centro da ilha até às plantações situadas nas encostas meridionais, através da construção de uma rede de canais, apelidados localmente de levadas.

No relato que Kate Brüdt nos deixou da sua estadia na Madeira, ficou bem vincada a importância que esta relíquia da era pré-industrial continuava a ter no seu tempo, desempenhando várias funções simultaneamente:
“Os caminhos estreitos que ligam as aldeias isoladas e que atravessam o interior da ilha, são por vezes inclinados e quási intransitáveis. Todavia bons caminhos planos seguem ao longo das levadas, regos artificiais que abastecem de água tôda a ilha. Estas pequenas e artísticas calhas encontram-se em toda a ilha. É graças a elas que os lugares afastados têm bastante água no verão quando as ribeiras secam quási por completo. Muitas vezes as levadas reúnem a água de várias ribeiras antes de chegarem às freguesias. Em alguns casos chega-se, num monte, a dirigir a água da encosta norte para a do sul. Esta água é não só utilizada para regar mas também para beber. Em quási todas as aldeias existem hoje em dia fontenários onde a água das levadas é filtrada para então depois ser consumida”.
A mesma autora também já sublinhava, na sua obra, a forma como as levadas e os poios formam um todo:
“É esta rêde de canalização que torna possível a agricultura na Madeira. O campo lavrável sobe até uma altura considerável das montanhas numa sucessão contínua de pequenos socalcos. Estes pequenos taboleiros encontram-se na encosta sul até 800 metros de altura”.
Hoje, muitos poios, construídos a grande custo pelas gerações passadas, estão ao abandono, desmoronando-se pouco a pouco à medida que deixam de ser cultivados. A continuidade da produção de uvas para o Vinho Madeira representa, assim, um travão ao seu desaparecimento.
